Estava aqui perdida nas sensações, buscando o que escrever, o que desta vez iria exorcizar de mim. Algo me seduziu nesse curto espaço de reflexão: minha infância, não abrangente, mas, especificamente, minha infância na casa de minha avó, Dona Maria Nilce Senador.
Se me permito fechar os olhos, vou de encontro aquela varanda, de mármore frio branco e preto, um vaso de planta com flores microscópicamente tímidas de cor romã, adorna uma mesa de ferro branco mono cromática, sem muitos adjetivos, a porta, visivelmente grande para uma menina de 5 anos, com uma fechadura antiga, que eu tinha prazer de apertar com cautela, na ansiedade de chegar ao ponto marcado do pique-esconde, antes de todos os netos. Meus primos: Fred, Lara, Tati, Tiago e Vítor… Entendimentos, desentendimentos, meus irmãos temporários, todos adotados por minha avó, e que se sentiam no direito de dividir a casa em feudos particulares, fazendo um ou outro de vassalo. Domingo, natal, ano novo, aniversário ou uma eleição ganha, e lá estava ela com sua roupa impecavelmente fina e colorida, o cabelo acima do ombro - negro como ébano e com cachos quase que fabricados, unhas meticulosamente feitas e uma voz inconfundivelmente linda. Eu ficava observando-a comer, com os dedos sujos do frango suculento, e ela mastigava com a boca aberta, sem perceber, fazendo surdos barulhos de virulentas mastigações. Recebi repreensões de minha mãe por ressaltar isso ao pé do ouvido. Depois, íamos todos para a sala, uma sala grande onde cabia a todos, o que causava uma corrida quase que mortal: os netos iam primeiro, iniciando uma guerra particular pelos melhores lugares do sofá cor de marfim, onde havia uma mesa de madeira escura com tampo de vidro transparente, e que, ate o final da conversa teria de permanecer intacta, sem nenhuma mancha, principalmente de peraltos dedos.Fim de tarde, quintal, aquele onde passou tantas horas da minha vida: solidão, repreensões, desobediências, planejamentos e um intenso exercício de criação. Um parquinho particular me esperava, rodeado por um canteiro, colorido até nos mais tímidos cantos, onde ela, com todo seu esmero, mantinha-o, com uma irrepreensível perfeição. Rosas, maiores do que uma criança: vermelhas como sangue, brancas como nuvem ou rosas como um fim de tarde.Subíamos depois de horas recriando o dia anterior, esfomeados, para a mesa com seus tantos quilos de madeira maciça, robusta, de banco comprido como os de arquibancada, enfeitada com uma toalha branca, farta e acompanhada do fogão de lenha, permanentemente aceso… Cheiro de café, biscoito de “dedinho”, pinhão - que durava segundos na mesa. Minha avó acolhia todas aquelas bocas abertas, naquele ninho. E lá vinha ela do quarto para servir a comida, envolta por uma beleza leve e digna de contemplação…Ah que saudade! Eu dizia: “vó o Fred puxou o meu cabelo; “vó eu quero leite”;“vó eu quero dinheiro” ou “vó, hoje não é a Tati que dorme com você, eu e que vou”, e ela, como uma boa avó permanecia calada, emitindo uns resmungos agradáveis, detrás de um sorriso inesquecível nos lábios cobertos de batom cor de boca, que ela adorava. Chegada a hora de dormir e a casa ainda permanecia em movimento: travesseiros, conversas chegando ao fim, cigarros, vinho, cervejas dançando pela cozinha. Eu, a neta caçula, sempre chegava por último, carregando todos aqueles cobertores e apetrechos, que, juntos, formavam um monstro macio três vezes maior do que quem os carregava. Ela batia a mão ao lado da cama, já com os óculos acoplados no nariz, o livro na mão e o abajur cor de ouro acesso no canto direito da cama. Eu pulava para cima daquele colo e me afogava na alegria de ter chegado a minha vez de acompanhá-la pela noite de sonhos e pesadelos. Abraçava-a forte, o corpo macio e uma pele que nunca toquei igual: macia como um pêssego, mesmo já estando na faixa da “Terceira idade”, impregnada do cheiro do desodorizante azul, que ficava espalhado pelo quarto. Isso tudo fazia com que eu me sentisse segura, nos meus quatro aninhos, quando eu era levada para a casa dela para o deleite de meus jovens pais. Lembro meus olhos vermelhos de medo do abandono, sentados no muro da varanda, segurados pelos roliços braços de minha avó, vendo os meus pais, já sorridentes pela bebida, partirem tranquilos para mais uma imatura noitada.
Aquela casa, era meu porto seguro… Aí, eu era posta na cama, e conversávamos horas, ela 60 e poucos anos e eu nos meus interrogativos cinco. Uma companheira, guerreira, eterna, mãe, avó e amiga.
Como a saudade dói minha querida avó, como você faz falta nessa família que se abrigou tantos anos em seu ventre, mas a saudade existe para ser sentida e você, para ser lembrada. Veio a doença, insistente - e esse é um assunto que não merece abordagem intensa, somente breve e inevitável citação. Mas da segunda vez, o câncer veio mais forte, foi quando a vi desaparecer devagar: primeiro o batom, depois o cabelo, o livro, os biscoitos, as roupas de seda e por fim sobrou apenas uma toalha branca e algumas migalhas de pão.
O piano emudeceu, como emudeceram as fotos de rostos conhecidos que o enfeitavam. Até que um dia a Senhora Morte se compadeceu e sem mais dor nem alarde cortou o fio dourado, fechando a última porta, levando consigo aquela que ainda perdura.
Mas o riso alegre, o passo enérgico, o perfume, a música, a voz e aquelas rosas, aquelas rosas permanecem comigo...Imagens inesquecíveis de quem já partiu… Mesmo que já se tenham baixado todas as cortinas…
Se me permito fechar os olhos, vou de encontro aquela varanda, de mármore frio branco e preto, um vaso de planta com flores microscópicamente tímidas de cor romã, adorna uma mesa de ferro branco mono cromática, sem muitos adjetivos, a porta, visivelmente grande para uma menina de 5 anos, com uma fechadura antiga, que eu tinha prazer de apertar com cautela, na ansiedade de chegar ao ponto marcado do pique-esconde, antes de todos os netos. Meus primos: Fred, Lara, Tati, Tiago e Vítor… Entendimentos, desentendimentos, meus irmãos temporários, todos adotados por minha avó, e que se sentiam no direito de dividir a casa em feudos particulares, fazendo um ou outro de vassalo. Domingo, natal, ano novo, aniversário ou uma eleição ganha, e lá estava ela com sua roupa impecavelmente fina e colorida, o cabelo acima do ombro - negro como ébano e com cachos quase que fabricados, unhas meticulosamente feitas e uma voz inconfundivelmente linda. Eu ficava observando-a comer, com os dedos sujos do frango suculento, e ela mastigava com a boca aberta, sem perceber, fazendo surdos barulhos de virulentas mastigações. Recebi repreensões de minha mãe por ressaltar isso ao pé do ouvido. Depois, íamos todos para a sala, uma sala grande onde cabia a todos, o que causava uma corrida quase que mortal: os netos iam primeiro, iniciando uma guerra particular pelos melhores lugares do sofá cor de marfim, onde havia uma mesa de madeira escura com tampo de vidro transparente, e que, ate o final da conversa teria de permanecer intacta, sem nenhuma mancha, principalmente de peraltos dedos.Fim de tarde, quintal, aquele onde passou tantas horas da minha vida: solidão, repreensões, desobediências, planejamentos e um intenso exercício de criação. Um parquinho particular me esperava, rodeado por um canteiro, colorido até nos mais tímidos cantos, onde ela, com todo seu esmero, mantinha-o, com uma irrepreensível perfeição. Rosas, maiores do que uma criança: vermelhas como sangue, brancas como nuvem ou rosas como um fim de tarde.Subíamos depois de horas recriando o dia anterior, esfomeados, para a mesa com seus tantos quilos de madeira maciça, robusta, de banco comprido como os de arquibancada, enfeitada com uma toalha branca, farta e acompanhada do fogão de lenha, permanentemente aceso… Cheiro de café, biscoito de “dedinho”, pinhão - que durava segundos na mesa. Minha avó acolhia todas aquelas bocas abertas, naquele ninho. E lá vinha ela do quarto para servir a comida, envolta por uma beleza leve e digna de contemplação…Ah que saudade! Eu dizia: “vó o Fred puxou o meu cabelo; “vó eu quero leite”;“vó eu quero dinheiro” ou “vó, hoje não é a Tati que dorme com você, eu e que vou”, e ela, como uma boa avó permanecia calada, emitindo uns resmungos agradáveis, detrás de um sorriso inesquecível nos lábios cobertos de batom cor de boca, que ela adorava. Chegada a hora de dormir e a casa ainda permanecia em movimento: travesseiros, conversas chegando ao fim, cigarros, vinho, cervejas dançando pela cozinha. Eu, a neta caçula, sempre chegava por último, carregando todos aqueles cobertores e apetrechos, que, juntos, formavam um monstro macio três vezes maior do que quem os carregava. Ela batia a mão ao lado da cama, já com os óculos acoplados no nariz, o livro na mão e o abajur cor de ouro acesso no canto direito da cama. Eu pulava para cima daquele colo e me afogava na alegria de ter chegado a minha vez de acompanhá-la pela noite de sonhos e pesadelos. Abraçava-a forte, o corpo macio e uma pele que nunca toquei igual: macia como um pêssego, mesmo já estando na faixa da “Terceira idade”, impregnada do cheiro do desodorizante azul, que ficava espalhado pelo quarto. Isso tudo fazia com que eu me sentisse segura, nos meus quatro aninhos, quando eu era levada para a casa dela para o deleite de meus jovens pais. Lembro meus olhos vermelhos de medo do abandono, sentados no muro da varanda, segurados pelos roliços braços de minha avó, vendo os meus pais, já sorridentes pela bebida, partirem tranquilos para mais uma imatura noitada.
Aquela casa, era meu porto seguro… Aí, eu era posta na cama, e conversávamos horas, ela 60 e poucos anos e eu nos meus interrogativos cinco. Uma companheira, guerreira, eterna, mãe, avó e amiga.
Como a saudade dói minha querida avó, como você faz falta nessa família que se abrigou tantos anos em seu ventre, mas a saudade existe para ser sentida e você, para ser lembrada. Veio a doença, insistente - e esse é um assunto que não merece abordagem intensa, somente breve e inevitável citação. Mas da segunda vez, o câncer veio mais forte, foi quando a vi desaparecer devagar: primeiro o batom, depois o cabelo, o livro, os biscoitos, as roupas de seda e por fim sobrou apenas uma toalha branca e algumas migalhas de pão.
O piano emudeceu, como emudeceram as fotos de rostos conhecidos que o enfeitavam. Até que um dia a Senhora Morte se compadeceu e sem mais dor nem alarde cortou o fio dourado, fechando a última porta, levando consigo aquela que ainda perdura.
Mas o riso alegre, o passo enérgico, o perfume, a música, a voz e aquelas rosas, aquelas rosas permanecem comigo...Imagens inesquecíveis de quem já partiu… Mesmo que já se tenham baixado todas as cortinas…
por Isis Valverde
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