terça-feira, 30 de março de 2010

Libelo

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar - e um barco com o nome da amiga, e uma linha e um anzol para pescar?
E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos, uma pro caniço outro pro queixo, que é para ele poder se perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar a tristeza, e um pouco de pensamento para pensar até se perder no infinito...

- Mas o mar está preso em correntes, e é preciso por ele lutar!

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra - um pedaço bem verde de terra - e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um modesto pomar; e um jardim - que um jardim é importante - carregado de flor para cheirar?
E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos para mexer na terra e arranhar uns acordes no violão quando a noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque para puxar mistério, que casa sem mistério não vale morar...

- Mas a terra foi escravizada, e é preciso por ela lutar!

De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um amigo bem seco, bem simples, desses que nem precisa falar - basta olhar -, um amigo desses que desmereça um pouco de amizade, de um amigo pra paz e pra briga, um amigo de casa e de bar?
E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à vontade ao amigo?

- Mas o amigo foi ludibriado, e é preciso por ele lutar!

De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma mulher com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular? E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de um carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o desatino o carrega em sua onda sem rumo? Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher - as únicas coisas livres que lhe restam pra lutar pelo mar, pela terra, pelo amigo...

Vinicius de Moraes, Abril de 1950 {Para uma menina com uma flor}

2 comentários:

  1. Existem muitas expressões de felicidade, contudo o "dar-se" feminino é o que há de mais difícil de ser encontrado...

    ...E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

    Vinicius de morais.

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  2. De que mais precisa um leitor sedento por boas leituras senão o Essência Abstrata?!
    Amei o texto, Sara!!!! Beijinhos!

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